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ORIGEM DA CACHAÇA - PARTE 2


A origem da cachaça foi o resultado de um processo histórico. A fermentação era dominada tanto pelos portugueses, com o vinho, quanto pelos índios, com o cauim. Esses dois povos eram a base do país que se formava em meados do século XVI, no qual a cachaça nasceu (os primeiros negros ainda estavam chegando; no século XVI, foram apenas 29.275, contra 784.457 no século seguinte, segundo o Trans-Atlantic Slave Trade Database).
Os índios, claro, não conheciam a destilação, processo que já era utilizado na Antiguidade, mas que foi disseminado a partir da invenção do alambique moderno, atribuída a Jabir ibn Hayyan (Geber), nascido no atual Irã do século VIII.
É bom lembrar que os árabes, nesse momento histórico, eram tecnologicamente muito mais desenvolvidos que os europeus. E também que dominavam a Península Ibérica, onde introduziram os alambiques que, ali pelo século XVI, quando os árabes já tinham partido de Portugal, eram usados na ainda incipiente indústria da bagaceira, a aguardente portuguesa.
Assim, portugueses que sabiam destilar e índios que fermentavam uma ampla variedade de vegetais logo aplicaram seus conhecimentos à matéria-prima que era o próprio motivo de existência daquela sociedade que se organizava: a cana-de-açúcar.
Em que ponto do litoral isso aconteceu primeiro? Não se pode ainda ter certeza, como sói acontecer com muitos acontecimentos históricos. Mas a produção comercial mais antiga que se tem registro segue sendo a do Engenho dos Erasmos, na ilha de São Vicente, em território hoje pertencente ao município de Santos. Fundado em 1532 por Martim Afonso, o engenho foi vendido, em 1540, para o banqueiro holandês Erasmo Schetz. Em 1565, o filho e herdeiro dele, Conrart, enviou farto material de ferraria para o Brasil, incluindo caldeirões e tachos de ferro e de cobre. Nesse momento, toda a região já sofria com a concorrência do açúcar nordestino e então partiu para a especialização em outros produtos: a rapadura e a aguardente, que logo se tornariam as suas principais fontes de recursos, sendo largamente usadas no comércio de escravos com Angola.
Portanto, não teve nenhum escravo tentando enganar o feitor, como nessa lenda que reforça estereótipos contra a raça negra, nem cachaça pingando do teto, como se o brasileiro não fosse capaz de criar um produto complexo por obra de seu próprio engenho.
Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores, doía muito. Daí o nome aguardente…
Meu Deus! O termo ardente que compõe o vocábulo aguardente não se refere a dor, mas a vida, a pulsação. Só precisa ir ao dicionário: Ardente: “Que é muito intenso, vivo, impetuoso” (Aulete).
O termo aguardente não nasceu de nenhuma dor das muitas que sofreram os negros escravizados no Brasil. Aguardente é a derivação em português do termo latino aqua vitae (água da vida), do qual se derivaram, entre outros, aquavit (destilado de batatas escandinavo) e eau de vie (destilados de frutas francês e nome primervo do armagnac).
O termo “pinga” é um caso clássico de antonomásia, quando se substitui o nome da coisa (aguardente) por uma característica dela (o fato de pingar do alambique ou dos barriletes usados nas vendas). Note-se ainda que era usado no Brasil Colonial o termo ‘pingante’ para designar as pessoas mais pobres e que formavam o grande contingente dos consumidores de cachaça. Ainda hoje, o termo pinga é identificado com as cachaças mais baratas, havendo até desavisados que fazem distinção entre o que seja pinga e o que seja cachaça, amaldiçoando o primeiro termo, de forma desmerecida.
Por fim, o tal áudio, como acontece constantemente, atribui a autoria de sua pletora de absurdos a uma fonte possuidora de autoridade, na tentativa de legitimar-se:
“História contada no Museu do Homem do Nordeste. Não basta beber, tem que conhecer”.
Ora, esse devoto esteve na respeitada instituição, no bairro da Casa Forte, no Recife. Lá estão velhos equipamentos de engenhos, como os pães de açúcar, nos quais o ‘ouro branco’ era purgado, e há algumas referências à cachaça. Mas nada nem de longe que se assemelhe com as bobagens do áudio.
Portanto, como vale para qualquer tema, é preciso ter muito cuidado com o que se recebe e se envia pelas redes sociais. Nem sempre essas estórias são criadas de forma inocente. E muitas vezes são prejudiciais, alimentando, como no caso dessa que versa sobre a origem da cachaça, preconceitos e imagens negativas. Buscar a verdade é sempre melhor.

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